sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Crítica ao filme Nine, de Rob Marshall

Assistir ao filme Nine (2009), do diretor Rob Marshall, uma pretensa homenagem ao diretor italiano Federico Fellini, é como assistir a um desfile videoclíptico de lindas mulheres, que mesmo sendo lindas e excelentes atrizes, afiguram-se como coreografadas por Beyoncé nas cenas musicadas.
Cenas do musical Nine

Do desconforto dessa inadequação, passamos a lamentar uma irreparável lacuna: como fazer um filme musical homenageando Fellini deixando de lado a genialidade do maestro Nino Rota, marca registrada na trilha sonora de suas produções?

Fellini possuía o dom de criar obras profundas, complexas, cheias de camadas interpretativas e, ainda assim, não soar pedante, agradar ao gosto popular. Não só por abordar assuntos que são do homem, universais, mas pelo contar leve, próximo, e cômico muitas vezes.

Não entender uma obra tão diversa quanto a de Fellini não é fato incomum. O tom de seus filmes muitas vezes não foi compreendido, foi tido como exagerado, fora de propósito, às vezes até cafona. Mas isso para quem? Para aqueles que não se deixam envolver por histórias que não se contam na mesmice, para os muitos que desconhecem a linguagem da poesia. E não posso deixar de dizer, também para os muitos que, hoje em dia, nunca foram ao circo. Um ou outro vai ao teatro, e olhe lá.

O filme de Marshall baseia-se em Oito e Meio (1963), nono trabalho do diretor italiano, estrelado por Marcello Mastroianni, Anouk Aimée e Sandra Milo. Nele, Guido Anselmi, o protagonista interpretado por Marcelo, é um cineasta que está a poucos dias de começar a rodar seu filme, mas não consegue sequer escrever o roteiro e sofre todo tipo de cobrança de sua equipe até o impasse final. Em meio à perseguição sofrida por jornalistas, assistentes, produtores... a pressão aumenta com o confronto entre sua esposa e sua amante. Em Nine, salva-se a atuação brilhante do ótimo elenco escolhido para a película. Ainda que se fique com uma sensação bastante diferente da que se tem assistindo a Oito e Meio.

No original, quando tudo parece mesmo perdido, vemos a partir da aparição do mágico Snaporáz, os personagens da vida de Guido (considerado alter ego de Fellini), entrando em cena, num picadeiro, como os legítimos personagens que ele, desde o princípio, entendia fazerem parte de seu filme. Vê-se também, puxando a fila de personagens, alguns palhaços que tocam cornetas e um menino – que, não por acaso, é o regente/diretor do show e o último a sair de quadro, quando as luzes se apagam. Isto é o circo! Esta é a metáfora do cinema de Fellini, e da confusão que sinceramente se confessa (em imagem e texto nesta cena), com uma pureza infantil até, na maneira de contar a sua visão do mundo e na sua maneira de vivenciá-lo. Há uma atmosfera absolutamente onírica e não sabemos se ele, Guido, voltou atrás e realizou, ou não, o filme afinal de contas. E isso não importa. Sabemos que idealmente ele realizou – tudo o que ele buscava traduzir em imagem durante todo o filme é dito com esta cena final.

Marcello Mastroianni, como o diretor Guido Anselmi, em cena final de Oito e Meio

Rob Marshall se esforça em manter este clima quando coloca na última sequência, com Guido em estúdio, a entrada inesperada e triunfal de todos os personagens anteriormente apresentados no filme. Infelizmente eles posam como dançarinos da Brodoway, não têm a simplicidade genuína do circense, a simplicidade intentada pelo diretor de Oito e Meio. A figura do menino (o ímpeto rebelde, impulsivo e criativo) também está presente e talvez seja a melhor de todas as referências feitas ao original.

O papel da esposa de Guido desempenhado por Marion Coutillard, antes interpretado por Anouk Aimée, é digno, forte, contundente, mas tendencioso ao tentar misturar vida e obra de Fellini – Giulietta Masina e Luisa Acari, respectivamente – de forma leviana, o que além de tudo não existe no primeiro filme. A Luísa de Nine (diferentemente da de Oito e Meio, que embora mantenha postura crítica, não nos dá subsídios para identificá-la profissionalmente), é parceira criativa de Guido (como Giulietta era de Federico), consultada pra tudo e respeitada criativamente, inclusive pela equipe. Ela não só é atriz, como é também estrela do filme que lança a carreira do marido, Guido – referência explícita ao filme La Strada e aos filmes da primeira fase de Fellini.
 Marion Coutillard como Luisa Acari, em Nine

 A crise do casal nas duas versões também parece diferente. Em Nine, desapercebidamente o diretor age como um sedutor barato com todas as atrizes do teste, de maneira igual. Assim, sua esposa, como uma de suas atrizes mais antigas, reconhece neste teste a mesma fala, o mesmo gesto, a mesma sedução antes dirigida a ela quando se conheceram, trabalhando juntos, e que ela julgava ter sido única e especial. Aqui o que fere é a banalização do gesto e do sentimento. A “traição”, assim, é vista, e seu prolongamento é sugerido, a partir da banalização desse gesto de carinho e admiração.
Anouk Aimée como Luisa em Oito e Meio
Mastroianni ao lado de Anouk Aimée em foto still de Oito e Meio, autografada por Anouk
Em Oito e Meio a esposa se magoa com a exposição da intimidade do casamento e da deterioração da relação. O diretor aqui quer colocar na película suas angústias pessoais, as questões de sua vida privada, como querendo colocar-se como matéria-prima, material humano a ser trabalhado pelo cinema. Importa muito pouco a relação do diretor com as várias atrizes em si, mas, sim, o papel que elas representam em cena – uma delas, “a esposa” e todas as outras, “a amante”. Aqui “a traição” é encenada e reconhecemos os personagens da esposa e da amante por seus figurinos, códigos pré-definidos: a roupa espalhafatosa de uma e os óculos intelectuais da outra.
Sandra Milo no papel da amante, Carla, em seu figurino espalhafatoso no filme original

O papel de Nicole Kidman corresponde ao de Cláudia Cardinale, mas, ao mesmo tempo, tenta remontar ao de Anita Ekberg em La Dolce Vita (1960), infelizmente sem igualar-se em magia.

Claudia Cardinalle é a atriz cobiçada de Oito e Meio

Não há problema com a excelente atuação de Nicole, mas a cena, embora seja boa, não é lírica, e seu personagem não alcança a estatura de mito que o de Anita parece alcançar sem nenhum esforço. No texto, o personagem de Nicole prefere estar na pele do homem, quer sair do pedestal que confere às musas o caráter indefectível. É mais realista.

Nicole Kidman, no filme Nine desempenhando o papel da atriz cobiçada de Oito e Meio - influência clara da diva Ekberg

Anita Akberg como a diva de La Dolce Vita de Fellini

A amante, antes interpretada por Sandra Milo, agora aparece na pele de Penélope Cruz. Suas cenas são bastante parecidas, desconsiderando a cena musicada em que Penélope dança. A atriz espanhola também tem ótima atuação, mas seu papel aparece com menor profundidade, não sabemos nada de sua família (a não ser que tem um marido para o qual não dá importância) vemos dela apenas sua paixão obsessiva por Guido, tentando até suicídio para chamar sua atenção.

Penélope Cruz em cena em cena da chegada à estação de trem
Sandra Milo em cena que foi refilmada de maneira quase idêntica em Nine

A mãe e o pai do cineasta em Oito e Meio são velhos e o pai tem seu destaque – após uma conversa, Guido o ajuda a entrar num buraco e em seguida despede-se da mãe num beijo confuso, que de materno se torna passional (além da figura da mãe se transformar nessa cena, na da esposa).

Em Nine, o personagem do pai é omitido e a mãe de Guido é atraente – interpretada não por uma senhora qualquer, mas por Sophia Loren. Seu personagem, imageticamente, lembra muito um personagem feminino de Amarcord (1973), uma mulher bonita chamada Grasdisca, freqüentadora do cinema e da qual todos os meninos queriam se aproximar na sala escura para tirar algum proveito. A senhora mais maternal do filme é a figurinista Eleonora / Lili, interpretada pela genial Judi Dench, que, no original, tem uma passagem ínfima em uma das cenas. Lili funciona um pouco como a consciência de Guido, completamente desgovernado, à beira de um ataque de nervos durante quase todo o filme. O abismo de se realizar um filme, em uma obra e depois na outra, parece se distinguir. O Guido Anselmi interpretado por Mastroianni parece preocupado em dizer algo simples, mas importante. Já o Guido Contini interpretado por Jerry Lee Lewis, a julgar pelo conjunto da película, parece preocupado em dizer alguma coisa, mas de modo grandioso.

Ao centro, o personagem Gradisca, em cena do filme Amarcord, de Federico Fellini
A atriz, Sophia Loren, no papel de mãe de Guido Contini

Completando o hall das mulheres escolhidas, há também Saraghina, a prostituta. Trata-se não apenas de uma figura grotesca – Saraghina era feia e gorda – como também mítica, representando, para aqueles meninos, o sexo, a fertilidade, a abundância. Não por acaso, esse personagem residia junto ao mar. Na versão americana, Saraghina não é nem grotesca, nem feia, nem gorda. Parece uma sensual devoradora de homens, perigosa. Sua dança na areia na versão original era mais ingênua, até um pouco cômica. Na versão atual, é estudada para seduzir, coreografada.

A atriz Eddra Gale como Saraghina no filme Oito e Meio
A cantora Fergie interpretando Saraghina no musical de Marshall

Outros personagens de Oito e Meio, assim como algumas figuras muito presentes na obra felliniana, não foram considerados nesta homenagem. Sente-se falta do circo no filme de Rob Marshall. Nele, o espetáculo ficou por conta de um cabaré-meio-Brodoway, onde as ruínas de Roma, no cenário ao fundo, são mero enfeite. Talvez, para tentar lembrar que se queria homenagear um cineasta italiano...

Pode-se entender porque Marshall tenha escolhido este filme para fazer a sua releitura e homenagem a Fellini, por ser um dos filmes mais apontados como auto-biográficos do diretor. Mas na tentativa de explicar o que Fellini apenas sugere e deixa no ar para sentirmos, acaba com sua poesia característica e corre o sério risco de interpretar mal aquilo de simples que Fellini gostaria de dizer.

3 comentários:

Alex Felix disse...

Será que preciso assistir?

Carolina Bassi disse...

Então, Alex!..rs. Pelo menos pra vir aqui e palpitar comigo!..r.s.
Beijos!

Patricia Ermel disse...

carol assim você me poupou dessa frustração que no máximo contemplarei em dvd. que feio né!!!
arrasou!!adorei a crítica.
beijo enorme.
pats