imagens do re-verso, um álbum no Flickr.
Cada criatura humana traz duas almas
consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... (...) A alma exterior pode ser um
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há
casos, por exemplo, em que um
simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a
polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um
tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida,
como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma
laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e
casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência
inteira.
MACHADO
DE ASSIS, J. M., “O espelho”. In: Antologia, Civilização Brasileira, 1981.
Machado de Assis no conto “O
espelho”, trata, por meio do
narrador-personagem da existência de duas almas: a interior e a exterior, como
duas metades. A leitura do texto foi um dos
disparadores da reflexão a que me propus no trabalho imagético que se segue: o
resgate dessa ideia de “alma exterior”, do
reconhecimento do indivíduo nas coisas que o cercam, nos objetos, naquilo que
ele vê, em projeção.
No trabalho em questão, reflito, por meio da criação de imagens
poéticas, sobre o processo de individuação sobre o qual discorre o filósofo
francês, Gilbert Simondon, processo que acontece em nós tanto na relação com
o Outro como na relação com as coisas, com o ambiente ao redor, no espaço e
também no tempo, na duração em que isto se dá.
Do espelhamento sugerido por M. de A. nos estendemos para o tema da
multiplicidade. Pode-se dizer que há o reconhecimento do indivíduo não só
naquilo que ele vê, nas imagens que o rodeiam (imagens externas), mas também
naquelas que ele cria (inspiradas em suas imagens internas), como no trabalho
artístico.
Nesta abordagem, pode-se notar o acúmulo de camadas como sobreposições
do tempo naquilo que envelhece – a poeira, pequenos pedaços de folhas secas, o
verniz que se desfaz na superfície da madeira, os veios que se abrem em linhas
fortes, os desenhos da ferrugem no metal em diversas tonalidades, raízes e
musgos que crescem sobre a matéria, cascas que se quebram – além da sobreposição
das palavras sobre a imagem, dialogando com a composição fotográfica, como mais
um elemento material incluído na obra. A intersecção entre fotografia e
literatura traz também a multiplicidade da linguagem, produzindo imagens em
conjunto. A obra oferece uma experiência sensorial, ao explorar o olhar háptico na construção de sua plasticidade.
Como numa obra aberta, são múltiplas também as interpretações, pois a obra só
se completa ao despertar as sensações e o referencial próprio do receptor. As
imagens oferecidas são fragmentos de objetos ou de espaços maiores, que não são
dados a ver por completo, fazendo com que a interpretação e o sentido só se
completem na imaginação e na mente de cada um.
Para a execução desta obra foram feitas as fotografias na cidade de
origem da autora, no interior do estado de São Paulo. As matérias-primas foram
partes dos portões de entrada de sua casa e outros elementos pertencentes à
antiga fachada. Após ter feito as fotografias, houve a seleção do material e
impressão em papel fotográfico mate fosco, possibilitando a inserção dos textos
com o uso de nanquim e tinta acrílica. Tais fotos foram, então,
refotografadas, sem inserção de filtros ou recursos de tratamento de
imagem.
Para a escolha dos textos foram selecionados poemas da escritora e
filósofa capixaba Viviane Mosé (incluindo a frase do escritor Guimarães Rosa,
citada por ela em um de seus livros) e partes de poemas do escritor argentino
Jorge Luis Borges.
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