terça-feira, 4 de maio de 2010

Reflexão sobre a tirania ampliada a partir da leitura de "Carta ao Pai", de F. Kafka (1º sem / 2006)

Texto escrito entre 2005 e 2006 e enviado ao diretor Antônio Januzelli durante processo de dramaturgização da peça "Querido Pai".
Foi um trabalho colaborativo, ele havia pedido a todos da equipe que escrevessem coisas, se quisessem. Como é um tema sobre o qual reflito muito, escrevi e entreguei.
Eu estava envolvida com a cenografia do espetáculo, mas todos podiam participar dos processos com os atores, o que foi muito fértil.
Depois, como o conceito da cenografia foi usar o espaço cênico do Teatro Viga exatamente como estava, infelizmente tivemos de nos ausentar dos laboratórios. Mas o curto período em que estivemos em contato com Janô e com os atores foi muito interessante e muito bom, sou grata por ter estado lá.
Segue meu texto, e esclareço que ele não faz parte da peça.


Escrevo este texto na intenção de questionar as tiranias, como é possível que nos deixemos levar pelos tiranos?

Agora reconheço que em alguns casos, isso se dá pelo medo de perder quem se ama – o tirano. Obviamente nenhum medo de perdê-lo por suas características tirânicas, mas por aquelas que teve um dia... e por aquelas que ele não valoriza em si, diamantes brutos... pela pessoa que, sabemos, ele poderia ser.

Por essa razão mais simples – o medo de perdê-lo – não lhe exponho minha dor, não questiono suas posturas, seu amargor perante a mim e meus projetos pessoais. (Projetos que pra mim, num dado momento passaram a secretos investimentos em formas improváveis...[1] Sim, improváveis. Tal a descrença instaurada pelo tirano). Tem-se medo de que não se possa mais contar com a possibilidade (porque sempre há esperança, mesmo que inconsciente) de conquistar seu afeto, sua atenção e admiração.

A luta é diária e exaustiva. Movo céus e terra para tornar-me mais brilhante, altamente desejável, inteligente, interessante... E o tirano me olha com indiferença, deixando explícito que minha atitude é notada apenas como esforço. Ele não vê o que sou.

No fundo, nesse momento, eu também ainda não me enxergo com nitidez, o que complica mais a minha tarefa de revelar-me ao tirano e ao mundo. Estou tão asfixiada pelos seus nãos, pelas suas recusas, que já me acostumei a me enxergar como você quer que eu me enxergue: Nada de especial.

E se ele vê o embrião que carrego viçoso, tenho a sensação de que finge não ver. Disfarça e ainda tenta distrair minha atenção para que eu também não o veja. Pois se eu não o vir, não cuidarei que ele cresça, serei sempre dependente de sua mão pesada. Continuarei tiranizada, mantendo seu ofício de tirano.

É tão raro que ele seja bom comigo que, se sorri alegre, meu corpo todo floresce! Fico feliz. Se me abraça enquanto dorme, acordo um pouco, fecho os olhos e me concentro nessa sensação... Tenho esperança de todos os carinhos ausentes, de um bom humor, porque se lembrou, de repente, e pra não mais esquecer, de que me ama, como antes. Este momento, como outros, tem força de oração.

*
Me lembro que um dia me convidou para ver um filme. Um que já tínhamos visto, mas que era bonito, um de seus favoritos. Me senti tão feliz com o convite que na hora tive que disfarçar para não parecer boba. Fui para minhas tarefas do dia, encontrei amigas em uma reunião de trabalho e me apressei, chegando meia hora antes do combinado, pois sei que detesta atrasos e me castiga se cometo esse deslize. Não era noite de deslizes. Era noite de mãos dadas, de cinema junto, jantar, banho quente, lençol macio...
Cheguei no lugar combinado, no centro da cidade. Um lugar feio, mas próximo do lugar onde ele trabalhava, próximo do cinema. Minha blusa era de verão, amarela, radiante. O dia tinha sido quente e eu usava sandálias. Começou a chover. Pessoas voltando do trabalho corriam, eu me abriguei numa banca de revistas. Olhava pra todos os lados, não o via. O tempo passando. Meninos de rua chegavam perto e jogavam água suja uns nos outros e nas mulheres de saia. Homens olhavam meu decote. Muitas pessoas falavam alto. A chuva só aumentava e fazia aumentar meu nervoso. Meus pés encharcados da água suja. A banca ia fechando. Liguei então muitas vezes para a sua casa – por que não me ligou para avisar que não vinha?... fiquei chateada, mas ele devia ter um motivo...
Foi quando desisti e voltei pra dentro do metrô que o vi chegar pela escada rolante... Me olhou com espanto - o que você está fazendo aí? Respondi que o esperava há quase 40 minutos... E ele, enfurecido, explicou que enquanto isso me esperava em outra saída da mesma estação...
A chuva cessou, ainda bem, e a passos rápidos, fomos em direção ao cinema, sem mais explicações. Estaria tudo bem, não fosse esse o caso de um tirano mau humorado. Por essa razão, ainda teve que rir da minha espera como se tivesse sido estúpida, teve também que lamentar o convite, largar da minha mão e silenciar, com um sarcasmo no canto da boca.
Chegamos finalmente ao cinema. Havia passado 5 minutos do início do filme e, em decorrência deste infortúnio, resmungou mais algumas vezes, parando apenas porque já estávamos adentrando a sala. Após a sessão, mãos vazias e muito mais silêncio... seu rosto só conhecia a direção oposta.
Metrô mais uma vez. Eu, a tiranizada, pedia desculpas, e como ele ficasse mais irritado, calei-me (também com certa irritação). Um fiapo de sanidade, já quase no fim do percurso, e tomei coragem para reclamar que o que havia acontecido não era tão grave assim. E esse, foi o único momento em que ele falou comigo de novo naquela noite, poucas palavras numa frase fria como a chuva que eu já havia tomado, você nem sabe o que se passa pela minha cabeça. Além de tudo, devia ser minha a culpa por desconhecer seus pensamentos, por sua raiva e por tudo de ruim que se passava por trás daquela fisionomia.
Sentei no banco do vagão, ele continuou em pé. Sua estação chegava uma antes da minha. Estava tarde, mas ele não foi comigo até a próxima. Havia planos de irmos pra casa juntos, mas não houve então nenhum comentário. Ruídos. Me deu um beijo de raspão e foi embora.
*

Esse tipo de coisa acontece e fica-se triste, largado como um resto[2]. Sentia-me mal com o desamor, com a desimportância que os dias novamente assumiriam; por ter estragado a noite que seria boa e, além, por ter causado tanto aborrecimento (!), talvez até por muito tempo antes, o que o evento o teria feito apenas lembrar.

Mas lembrar de quê? E a resposta não vem. Na verdade, talvez nem haja resposta, ela nunca vem. Não me sinto muito bem. Mas por quê? E a resposta não vem mesmo.

Não há respeito, não há carinho, não há futuro, não há nada. Há o sentimento de posse do tirano em relação ao tiranizado, numa relação que sempre, ou quase sempre, se estabelece entre pessoas que se amaram mutuamente, ou que deveriam se amar por algum motivo[3].

Me vejo procurando por mim tocando a vida cotidiana. Quando ia à sua casa, procurava detalhes que denunciassem um motivo, uma razão pra falta de interesse, pra tanta penalidade. Afinal, de tudo eu era excluída. De suas novidades, dos discos novos comprados, dos livros novos comprados ou lidos, de seu passado, dos lugares onde passara o dia, dos passeios que pretendia fazer, sempre com outras pessoas e não comigo. Nunca mais um convite. Sempre assim, se quiser ir, vá, não faz diferença. Sou excluída também dos finais de semana. Dos assuntos, dos projetos...

Ficar sozinho, ou ficar comigo? Ele se faz essa pergunta e meu desespero se torna completo. Me sinto muito menos eu mesma sem o tirano. O que vou fazer?

Eu o amo. O amo tanto, que acredito nele acima de tudo. Quero ver as coisas a partir de seus olhos. O admiro, e como acredito ser merecedora de sua admiração, quero que, portanto, ele também me demonstre isso, ou não estarei satisfeita. Quero que me demonstre seu amor, ou também não estarei satisfeita.

O tirano amado assume para mim um tamanho cada vez mais descomunal enquanto me torno minúscula. Antes não havia desproporção. A ele me doei e ele me quis. E vice-versa. Comecei com essa doação apaixonada e voluntária, quis ser apenas dele, quis que mais ninguém me amasse, pois que eu também não queria mais ninguém.

Mas depois, sinto que ninguém mais me amará e que não há escolha para mim. Tornei-me dependente dele, de sua força, de seu julgamento e raciocínio – já que me foi censurada toda a liberdade de tomar minhas próprias atitudes, coerentes à minha pessoa. Não me conheço mais. Quero procurar por mim e não sei nem por onde começar.

Um pesadelo instaurado. Uma solidão incurável e indescritível, que se eu abro a boca pra falar dela, sou reprimida pelo tirano, seco e inteligente, acusando como bobagem a dor que sinto, quanto mais profunda ela for.

A vida dói e não se pode falar ai. Muito menos pra quem mais se ama e confia. Se emagreço, ele não nota. Se adoeço, ele não imagina o porquê. Estou de luto duas vezes: pelo amor que me é negado, com crueldade, e por mim, que me perdi.

Eram minhas, aquela passividade, aquela subserviência? E aquela mendicância de amor, era minha também? Não, não eram minhas estas más qualidades. E como você, tirano amado, pôde escolhê-las para mim?? Logo eu, que já o amava de graça, a troco apenas de seus grandes sonhos e de seus olhos bons?...

Eu, em sua casa, me lembro de transitar pelos objetos e olhá-los com um respeito demasiado: eram muito mais interessantes, eram especiais, eram seus!... (Queria agradar tudo em você e se pudesse, agradaria até o que o rodeia). E só agora percebo que eu me via menor ainda que seus objetos, muito menos importante e querida. Hoje, olho pra eles e percebo tudo em escala natural. Às vezes até menor. São pequenos, são objetos mesmo. São ridículos até, sujos às vezes. Não mereciam ser nada a mais que isso.

Pois que com muito custo e paciência, volto a mim com violência, já transformada em outra, muito melhor e me reconheço mais que em qualquer tempo. Tenho força própria. O mundo está brilhante. As experiências têm gosto. Melhor dizendo, gostos. Diferentes e saborosos... Tenho luz própria. Ninguém passa sem me ver. Descobri em mim, uma boca grande. Tenho fome da vida. Estou grávida de sonhos. Amor não vem em migalhas... O amor me inunda sem pressa, em ondas quentes e úmidas, largas e salgadas como o mar inteiro...

Alguém curou minhas asas quebradas, ou eu mesma as curei. Quero voar. Leveza e alegria.

Mas o tirano, quem diria! Descubro que só o é, porque acima de tudo, é um frágil. É alguém que teme não ser admirado dentro de seus conceitos, alguém que teme não ter o controle sobre o outro - em quem ele vislumbra a possibilidade de vôos mais altos, vôos que possam criar uma distância entre ele e seu objeto de tirania. O tirano é também alguém que teme o julgamento alheio. E usa um método, de certa forma, violento. Antes que lhe digam qualquer coisa, já vem com um tabefe, criando alguma superioridade e a predisposição ao medo nas pessoas, as quais certamente pensarão duas vezes antes de lhe dizer algo novamente. Por isso tudo, o tirano também constrói sua existência em cima de quem ele oprime – não fosse o oprimido, o que seria do tirano? É uma relação de dependência, paralela à outra, e menos evidente.

Uma vez tirano, sempre tirano? Não, nem sempre. Mas imagino que seja como um vírus, sempre muda de aspecto... A mesma coisa com o tiranizado. É bom que se policie e não se submeta. As pessoas cedem. Mas não precisam ceder sempre.

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[1] “Onde não há jardins, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis” – Carlos Drummond de Andrade, no poema Campo de flores.
[2] Como no capítulo Fading, de Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes.
[3] Parentesco, proximidade, como é o caso de Kafka e seu pai, por exemplo.

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