sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Texto criado para encenação na Oficina de Cenografia com Jean-Guy Lecat (2005)

Vila Maria Zélia
Texto criado a partir de uma notícia de jornal, que meu grupo escolheu na oficina. Foi um improviso, um tanto dramático, mas a história era escabrosa...

(Fala com os filhos dentro do casebre)


Vocês fiquem aí e fiquem quietos!
O mundo lá fora está repleto de maus tratos
E meu abrigo não é completo.

(vai para fora e segue falando)

Essa sujeira...
E esses ratos!...

(voltando-se para o casebre)

Vocês fiquem quietos, por favor, fiquem quietos!
Esse medo não tem portas, nem tramelas,
Nem teto.

Queria engoli-los de volta
Pro abismo das minhas entranhas,
Mas esse corpo seco...
Não daria um bom invólucro pros seus sonhos.
Pros seus sonhos...
Pros SEUS sonhos!

Fiquem aí, onde há espaço pra suas brincadeiras pueris!
Onde há espaço pro meu sofrimento?

São tantos os egoísmos infantis.
Esse destino!
Desde que estive aqui,
Ou lá...
Tudo frutifica pútrido
Tudo multiplica fétido,
Tudo me parece espúrio...
Um passado indecente,
Um presente esdrúxulo,
Um futuro inexistente?
Uma vida escusa...
A mim, só me sobram os ralos,
Os furos por dentro dos muros,
Todos os cantos de ares mais escuros!
Merecer sempre a mesma fresta,
Entre o espaço e a ausência,
Entre o nada e a demência.
Nem sei de quê me alimento...
De que vivem esses seres que sustento,
Que saíram de mim sem saber porque,
Sem ter pra quê nessa existência!Que bagagem tão pesada é essa?
Que bagagem, tão pesada,
Tão mais que o natural peso da existência!
Um peso que arrasto,
Que me faz companhia onde quer que eu vá,
Pra onde vai meu passo?
Que arranca da garganta todo o canto,
E do corpo, todo o espaço?

Sinto um peso enorme,
e todo o meu ser está vazio...
O que eu faço com essa casa, cheia de ratos,
Tendo esses braços tão ressecados?
Como aquela arvore invernal
Que não sente mais a noite fria.
Como poderia ter florescido?
Ninguém no mundo desconfia.Ouço uma voz incessante...
Como o sangue que não estanca nas veias,
Como o cântico mais inebriante,
Prometendo a paz que o coração anseia.


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Ouço, ouço...
Vem de longe
e não se acanha!
Um dia eu volto,
Um dia,
Um dia eu volto,
Quem sabe?...
Preciso ir
Quero seguir todo o meu desejo,
Toda essa vontade tamanha!...
De sentir tão somente a alegria que mereço.
A face iluminada da lua,
Que não conheço!

Tudo aquilo que nunca vi,
Mas não me esqueço.

(sai de cena, vê-se uma bola branca rolar
do casebre em direção ao centro do palco)

2 comentários:

Unknown disse...

De repente sou lançado ao universo sombrio de Goya, onde os seres cósmicos comem seus próprios filhos e os inocentes são assassinados. Onde a miséria humana encontra abrigo e os sonhos se dissipam. Denúncia e poesia.

Carolina Bassi disse...

Meu lindo.

Amo você.